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AGO 21
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Mercado teme que governo ‘aproveite meteoro para criar cometa halley’

Impasse sobre precatórios comprometeu de vez visões mais otimistas sobre alguma folga no teto fiscal no próximo ano

Por Lucinda Pinto, Valor — São Paulo

A piora dos mercados financeiros que se viu nesta manhã pode ser explicada por uma frase: o risco fiscal voltou. O “meteoro” dos precatórioscomprometeu de vez a visão mais otimista dos investidores proporcionada pela perspectiva de que haveria alguma folga no teto fiscal no próximo ano. Em resposta, o dólar foi para cima dos R$ 5,27 no pior momento do dia, enquanto os juros futuros dispararam.

Esse movimento reflete, segundo analistas ouvidos pelo Valor, a reversão da melhora de humor que se viu nos mercados desde que ficou claro que, em grande medida por causa da inflação, haveria uma folga para gastos adicionais — inclusive para um Bolsa Família turbinado — em 2022, ano eleitoral.

Mas, embora tenha sido bem intenso no começo do dia, esse aumento de prêmio não contempla ainda o risco de calote — o que, para alguns especialistas, estaria configurado caso seja feita a opção pelo rescalonamento do pagamento dos R$ 40 bilhões em precatórios que não haviam sido contabilizados. E nem mesmo o risco de o governo aproveitar essa discussão para promover um aumento do Bolsa Família para R$ 400.

“Acredito que, a esses preços, o mercado apenas fez um freio de arrumação, não está considerando nenhum cenário de ruptura”, define o gestor de um grande fundo paulista. O encaminhamento que a questão deve ter nos próximos dias é que vai definir, portanto, se haverá ou não uma piora na leitura e, portanto, nos preços dos ativos. “O mercado vai ficar de olho no que a Economia vai fazer”, diz o economista-chefe da Garde Asset Management, Daniel Weeks.

O economista lembra que, nas últimas semanas, o mercado já vinha mostrando preocupação com a alta das projeções para a inflação no fim deste ano e seu impacto sobre o fiscal. “O espaço no teto do próximo ano, que chegamos a estimar ser entre R$ 35 bilhões e R$ 40 bilhões, caiu para perto de R$ 20 bilhões”, afirma. Isso ocorreria porque a inflação mais alta no acumulado no ano corrigiria para cima o volume de gastos do governo.

A notícia sobre os precatórios não só come esse espaço como cria um rombo. E, para Weeks, qualquer decisão a ser tomada traz problemas. De um lado, reescalonar esse pagamento é apontado por alguns especialistas como uma espécie de calote — já que a lei define que esses compromissos do governodevem ser quitados no ano corrente.

Outra alternativa seria acomodar essas despesas num fundo, como propõe o Ministério da Economia, com a prerrogativa de retirá-lo do teto. “Isso abriria uma precedente ruim para o teto”, diz.

Mas o pior cenário seria o que parece estar sendo articulado pelo centrão. A possibilidade de se reescalonar um volume ainda maior de pagamento de precatórios de forma a acomodar o aumento do Bolsa Família para a casa dosR$ 400 seria a pior solução, dizem os especialistas.

“O que assusta é a impressão de que trata-se de casuísmo eleitoral”, define o gestor de outro fundo de São Paulo, também sob condição de anonimato. “O mercado ficou com impressão ruim de que está sendo feita uma pedalada. De que o governo pode aproveitar o meteoro para fazer cometa Halley.”

Para esse interlocutor, a possibilidade de se fazer o reescalonamento de precatório não é, em si, uma medida negativa. Mas precisaria ser discutida com transparência e sem a pressão que está colocada para acomodação de gastos.

“A leitura que o mercado faz é a de que pode até ter algum mérito o reescalonamento de precatório. Isso já acontece em nível estadual, com respaldo da União”, explica. A questão é o uso desse instrumento para acomodar os interesses políticos.

“O centrão mostrou que não está para brincadeira. E discutir essa questão num momento em que o presidente [Jair] Bolsonaro está com a popularidade baixa pode ser uma combinação explosiva”.

Para Marcos Mollica, gestor do Opportunity Total Master, o mercado está, de fato, elevando nos preços o prêmio relativo à insegurança fiscal e também jurídica. Isso por causa do debate sobre o reescalonamento dos precatórios que, inevitavelmente, afeta a credibilidade do governo.

“Algo que deveria ser pago imediatamente será parcelado em anos”, lembra. Mas a grande questão é a ameaça ao teto de gastos com a discussão sobre o aumento do Bolsa Família que está por vir. “O mercado está reprecificando o risco fiscal, mas não se trata de risco de solvência”, explica.

Para ele diz que, neste momento, câmbio e bolsa têm maior potencial de perdas, porque vêm de um período mais otimista. No caso do dólar,investidores vinham operando sob a perspectiva de valorização do real a partir da alta adicional da taxa Selic pelo Banco Central. Hoje, o consenso de mercado é de que o juro deve subir um ponto percentual na reunião desta quarta-feira.


Reprodução da matéria publicada no “Valor Econômico”, 03/08/2021.